O vendedor



João Carlos foi acordado às oito e trinta da manhã de domingo, com a campainha de sua casa tocando insistentemente. Ao abrir a porta, se depara com um vendedor que lhe oferece um produto peculiar. 

O VENDEDOR
Marcos Cárfora


João Carlos foi acordado oito e trinta da manhã de um domingo com alguém tocando a campainha. “Não acredito!” – pensou. “Quem diabos tem a coragem de tocar tão cedo na casa de alguém no domingo?”.
Pensou até em não atender. “Que se dane!”. Mas a mulher lhe cutucou com a perna esquerda: “Mô” – chamou, com um desses apelidinhos carinhosos que os casais insistem em inovar, mas que caem sempre em “Mô”, “Mozão”, “Zão”, “Bem” ou outros docinhos – “Tem alguém tocando a campainha”. E nesse momento, foi-se a esperança de que a mulher levantaria para atender.
Tirou as pernas para fora do colchão e tateou o chão com os pés, procurando o chinelo. A campainha continuava insistindo. “Já vai!” – gritou para a campainha, coisas que costumamos fazer, por acharmos que a campainha, o telefone e o forno elétrico podem escutar e entender o que dizemos.
Abriu a porta com cara de poucos amigos. À frente, estava um rapaz com um sorriso tão branco e imenso que parecia até comercial de creme dental. Os cabelos, emplastados de gel, delicadamente repartidos ao meio, como daqueles apresentadores de programas de auditório. Vestia uma camisa rosada, três canetas no bolso. Calça jeans e sapatos pretos faziam a combinação.
- BOM DIA! – disse cantarolando o tal rapaz. Com a voz ainda rouca de quem acaba de acordar, João Carlos respondeu, sem esboçar nenhum sorriso:
- Pois não?
Meio sem graça com a recepção pouco calorosa, o rapaz tentou quebrar o gelo:
- Eu sei bem o que o senhor está pensando neste momento!
- O que é você? Um sistema de vidente delivery?
- HAHAHAHAHAHA! – fingiu uma risada, o rapaz – Que ótimo senso de humor! Acho que o que eu tenho aqui talvez nem mesmo lhe sirva!
Coçando uma das nádegas, João Carlos, ainda sonolento, percebeu que a figura a sua porta era um vendedor de qualquer bugiganga que, ele certamente, não precisava e não queria.
- Então, tá. Obrigado. – O tal vendedor interrompeu o fechar da porta e disse:
- Opa, opa, opa! O senhor não vai querer perder essa oportunidade de ouro! Não é todo dia que a felicidade lhe bate à porta!
João Carlos buscou no fundo de sua alma a educação que a mãe, muito católica, havia lhe dado, remedando um esforço imensurável para não mandar o tal do carinha feliz para o lugar que a gente sempre quer mandar aqueles que nos enchem o saco.
- Olha, - disse, pacientemente – não há nada que eu queira no momento. Aliás, há sim: eu quero voltar ao meu sono de domingo de manhã que você interrompeu.
- Oh! Desculpe-me... eu lhe acordei?
João Carlos apontou para o pulso para indicar o quanto ainda era cedo. Nem reparou que estava sem relógio.
- Prometo não lhe tomar muito tempo... qual o nome do senhor?
“Melhor cooperar com esse cara, pra ver se me livro logo dele” – pensou. E respondeu, seco:
- João Carlos.
- Ah! Senhor João Carlos! – deu uma ênfase em “senhor” – Vamos deixar mais informal! Posso lhe chamar de Joca?
João Carlos não respondeu.
- Então, Joca, adivinhe o que eu tenho aqui?
- O vidente é você.
- HAHAHAHAHA –a risada pareceu ainda mais falsa – você é mesmo hilário! Uma piada que somente alguém dotado de muita inteligência poderia fazer de improviso. Não, Joca, não sou vidente! Sou aquele que veio lhe bater à porta com nada mais, nada menos do que uma não grande, mas sim ENORME proposta de ser FELIZ! Diga-me uma coisa, Joca – e disse isso passando o braço sobre o pescoço de João Carlos, como se fossem amigos há muito – o que deixa você feliz?
- Dormir em paz no domingo de manhã.
- Que pena, então, que não estou aqui lhe oferecendo colchões! HAHAHAHAHAHAHAHA! – a risada pareceu verídica, dessa vez. O silêncio de João Carlos quebrou um pouco a graça do momento, e o vendedor continuou:
- Mas, para dormir em paz, é preciso estar devidamente feliz e satisfeito, concorda? – disse, mostrando ainda mais o sorriso.
Pensando o quanto, naquele momento, odiava a mãe por ter lhe deixado tão educado, João Carlos, na tentativa de acelerar o programa da venda, perguntou:
- O que é e quanto custa?
- Não, não, não, Joca! Para que a pressa? Antes, preciso lhe mostrar os benefícios desse produto que está, há muito, em falta no mercado. Quando você acorda pela manhã, qual a primeira coisa que lhe passa a cabeça?
“Qual a pena máxima ao se matar um vendedor?” – esboçou um sorriso.
- Vê? Já deu até um sorrisinho! Aposto que se lembrou da patroa!
“Ela bem que podia ter vindo atender a porta” – e fechou a cara de novo.
- Não sei... no café da manhã?
- Não!
- Em escovar os dentes?
- Na-na-não.
- Banheiro?
- Nã-ão.
“Às vezes, temos a impressão de que os vendedores sabem mais do que queremos do que nós mesmos”.
- Olha, como parece que você sabe mais do que eu o que penso, vamos acelerar o processo. Me diz, o que eu penso logo quando acordo?
- Você pensa, Joca, no motivo de ainda não ter encontrado a felicidade plena.
- Não é isso o que eu penso não.
- Você é que pensa! Todo mundo, quando acorda, pensa nisso. O quanto a vida poderia ser melhor, mais feliz. E é isso o que eu tenho aqui: nada mais, nada menos do que a FELICIDADE!
Abriu uma maleta preta e puxou uma pequena caixa. Na frente da caixa, a inscrição “HAPPINESS”.  
- Aqui está ela, totalmente embalada para que você leve em qualquer lugar, a FELICIDADE!
Dessa vez, João Carlos pareceu um pouco mais curioso:
- Como assim?
- AH! Sabia que iria se interessar! Veja, dentro dessa caixinha portátil, existem 365 cartas com frases diferentes para todos os dias. É muito fácil: basta acordar de manhã, abrir a caixa, puxar uma carta e pronto: a fórmula da felicidade pode estar escrita aqui. Sabia que milhares de pessoas já mudaram sua maneira de ver a vida só de ler, todos os dias, uma frase da caixa da felicidade? E não é só isso: adquirindo a versão PLUS, você recebe, inteiramente grátis, uma carta extra, especial para os anos bissextos.
- Você sabia que é possível abrir uma loja na internet para que as pessoas que buscam a felicidade possam ir até ela, sem precisar acordar cedo em um domingo?
- Mas, que graça teria? Essa coisa de internet é muito informal. Veja os benefícios: porque estou aqui, pudemos estabelecer um contato bacana, uma conversa animadíssima e iniciamos uma bela amizade, Joca! E tem mais: se vendêssemos pela internet, o nosso slogan iria por água abaixo.
- Que slogan?
- “A felicidade está batendo na sua porta”.
João Carlos suspirou.
- Quanto é?
- Apenas cem Reais! E dá para pagar com cartão de crédito!
- Cem paus por uma caixa com cartinhas?
- Não são “cartinhas”, Joca. São suspiros de felicidade que podem e irão mudar a sua vida. Quer ver? Puxa uma aí. – e estendeu a tal caixa da felicidade ao João Carlos. Ele puxou uma carta.
- Deixe-me que leia para você! – o vendedor tomou-lhe a carta.
-NÃO ACREDITOOOOO! Caiu certinho para você! Vou ler em voz alta: “Se, em algum momento, tiver que fechar a porta para a felicidade, abra a ela uma janela”. Que lindo! Enche-me os olhos d’água!
- Obrigado, não quero.
- Mas você poderia...
 - NÃO QUERO! – foi enfático.
- Não aceito “não” como resposta! Puxe apenas mais uma! Se a frase não lhe disser nada, saio daqui e nunca mais volto.
Estendeu a caixa da felicidade para João Carlos que, a contragosto, puxou uma carta. Leu para si e deu risada. Entregou- a de volta ao vendedor e lhe bateu a porta na cara.
A carta dizia: “A felicidade não se compra”.

Fevereiro de 2015.






Comentários

  1. Adorei, hahaha, ri durante toda a leitura. As reações do João Carlos são hilárias e o desfecho é muito bom!

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