A árvore





SINOPSE
É apenas uma árvore velha, possível de avistar da janela da sala. Uma árvore teimosa, que resistiu ao tempo e aos que acreditam que ela seja apenas um estorvo, que suja a rua com suas folhas secas ou atrapalha a entrada de uma oficina de automóveis. Quando um grupo de vizinhos discute o futuro desta velha árvore, será possível que haja maneira de salvá-la?





“Cada árvore conta”
Elisabete Fátima de Assis Lago.

A ÁRVORE
Marcos Cárfora


Na minha rua, tem uma árvore.

É uma árvore velha, plantada há muitos anos, de tronco fino, casca grossa. De folhagem pouca e nenhum fruto.

Fica lá, próxima ao portão da garagem de uma oficina de automóveis. Teimosa, venceu o concreto, forçando pequenos tufos de grama a sair pela rachadura da calçada.

As poucas folhas que tem mostram alguma resistência ao ar pesado e sujo da fumaça dos automóveis. O aspecto cansado da árvore denuncia sua existência antiga. Os galhos parecem fracos até mesmo para aguentar as folhas que, secas, desprendem-se e, suavemente, dançam no ar seu último trajeto até tocar o chão.

Todos os dias, quando me sento no sofá próximo à janela, eu a vejo. “A árvore raquítica”, penso.

Quando os fortes ventos das tempestades de verão castigam seu tronco, por muitas vezes chego a imaginar que ela não aguentará a pressão e tombará. Mas, ao final da tempestade, lá está ela.

É uma árvore que nos engana. Apesar de seu aspecto frágil, tem uma raiz forte, que busca seu alimento e sua sustentação no solo sufocado pelo asfalto. Seus troncos, aparentemente finos demais, possuem a força de servir de apoio para ninhos de pardais. Já atravessou muitas primaveras, embelezando a vizinhança com belas flores em seu tempo áureo. Nos verões que castigavam o asfalto, sentiu por muitas vezes o calor em sua raiz e o sufoco em suas folhas cobertas de fuligem. Envergonhou-se ao perder essas mesmas folhas no outono, mas sabia que isso era necessário para a renovação. E nos invernos gelados de pouca umidade, esforçou-se para manter-se em pé e forte, sentindo cada queimar do orvalho gelado da madrugada.

Hoje, a presença dela é vista de diferentes maneiras. Uma vizinha insatisfeita reclama todos os dias da sujeira que a árvore faz ao deixar suas folhas secas pelo chão. “Esse pedaço velho de madeira não vale a sujeira que faz”, diz. O dono da oficina já reparou que, sem a presença da velha árvore, seria muito mais fácil manobrar os carros que entram e saem para o conserto. Até os meninos na rua já se queixaram de perder suas pipas que enroscaram em seus galhos.

Assim, vencendo o asfalto, suportando a fumaça e os ventos fortes, resistindo às queixas, lá está ela, a árvore, vivendo da maneira que se pode viver uma árvore em suas condições. Parece até sentir medo, como se sua existência estivesse ameaçada a todo minuto. De tanto ouvir reclamações a seu respeito, parecia ter vergonha de existir. Porém, como se quisesse justificar sua existência, a frágil árvore produzia uma brisa leve e saudável, assoviando suavemente ao deixar o vento da manhã passar por entre suas folhas, como se tivesse a intenção de gritar a todos: “Eu existo!”. Nos dias de verão, ao sol do meio-dia, ela parecia engrandecer, como se pudesse produzir uma sombra maior do que seu tamanho para refrescar aqueles que passam por ela.

Mas nem só de queixas vive a árvore. Já serviu de pique nas brincadeiras das crianças. Já teve a casca de seu tronco marcada com um coração e os nomes de dois jovens apaixonados. Foi ponto de encontro e referência: “passa a árvore, duas casas depois”. Se ela falasse, quantas histórias teria! Quantas conversas ao pé da árvore aconteceram ao longo dos anos, quantos segredos ela teria consigo. Mas não há motivo para preocupação: todos estão muito bem guardados.

Quando cai a noite e o Sol se esconde, deixando o palco pronto para a lua, é possível ver a árvore, agora solitária na calçada. Não há próxima a ela nenhuma outra árvore. As poucas que antes existiam foram sendo cortadas pelo homem ou derrubadas pelo tempo. Como em um monólogo depressivo, ela agora parece triste sem a presença da luz do dia, sem o cantar dos pássaros, até mesmo sem a fumaça dos automóveis. Então, como se fosse possível perceber, a árvore dorme e espera o sol chegar, trazendo uma nova manhã e um novo dia para viver e resistir.

Pela manhã, afasto a cortina da janela da sala e de lá posso avistar a velha árvore. “A árvore raquítica”. Aquelas que muitos não entendem, que outros ignoram, a que atrapalha. A minha árvore.

Saio cedo para as obrigações do dia. Mas antes de seguir minha rotina, passo por ela e acaricio seu tronco fino, em um gesto que significa “eu sei porque você está aqui”. E tenho certeza que a árvore entende. Torço para que ela tenha um bom dia, um dia mais fresco em meio à fumaça e ao calor que vem do asfalto nesses dias de final de verão. Mas o pior está por vir: a chegada do outono.

No outono, as poucas folhas que a árvore tem caem quase todas. As queixas contra ela aumentam. “Todos os dias tenho que recolher essa sujeira!” – reclama a vizinha. Ao chover, as folhas são carregadas pela sarjeta da calçada e “entopem o bueiro”, dizem, como se fosse esse o verdadeiro lixo que prejudica o sistema de esgoto. Por isso, nos últimos anos a história vinha se repetindo em todos os outonos. Parte da vizinhança, especialmente a que estava mais próxima à arvore, pedia a retirada dela e o fim dos transtornos das calçadas e quintais “sujos” de folhas. “Será melhor para todo mundo”, dizia a vizinha, tentando promover um comitê contra a árvore. “Quando chover, o bueiro não vai mais entupir com as folhas que caem dela, evitando enxurradas”. O dono da oficina apoiava, dizendo que a árvore atrapalhava muito seu negócio, já que ele tinha que perder alguns minutos a mais de seu dia para manobrar cuidadosamente os carros. Alguns até diziam que ela era feia, fina, muito velha, que seria melhor cortar mesmo.

“É mesmo uma árvore raquítica”, eu dizia. Mas era uma árvore que estava ali há mais tempo do que muitos dos moradores. Os mais antigos afirmavam que o asfalto foi feito sobre suas raízes e que as paredes das casas foram levantadas ao seu redor. Por ela, passaram muitas vidas. Ela tinha visto crianças se tornarem adultos, adultos se tornarem idosos. Viu o passar dos anos e o avanço da comunidade, que foi tomando o terreno, antes habitado por outras tantas iguais a ela. Hoje, em uma floresta de concreto, ela é a única da rua. Aquela que resistiu.

A cada discurso meu, eu conquistava mais algum tempo para a árvore. O mecânico acabava concordando que “um minutinho a mais ou a menos não faria muita diferença em seu dia”.

A vizinha insatisfeita já havia virado a cara para mim faz tempo, mas eu não me importava. Cheguei até mesmo me oferecer a varrer diariamente sua calçada, mas ela não aceitou, tinha uma birra danada com a árvore.

Então, uma forte chuva em uma madrugada de abril veio para mudar a história.

Começou com um vento forte, tão forte que era possível ouvir o assovio que produzia ao passar entre as poucas folhas da árvore. Acordei assustado, trovões e relâmpagos anunciavam o que estava por vir.

Afastei a cortina da sala e pela janela vi que a árvore estava arqueada com o forte vento. De momento, pensei que ela não iria aguentar, mas lembrei-me de sua história de força e resistência. “Ela é forte” – afirmei a mim.

Quando a chuva desabou, tive a sensação de que toda a água acumulada em meses descia do céu. Caía com uma força tão intensa que o barulho das gotas parecia um animal tentando romper a janela. E foi assim por vários minutos, quase uma hora. Por fim, a chuva foi acalmando e aos poucos parou.

Pela janela, dei uma olhada para confirmar se a árvore havia resistido à chuva. E lá estava ela, encharcada e de pé. Mas vi também que a situação da rua havia se tornada crítica. Uma enxurrada descia e não havia vazão para ela. Provavelmente, os bueiros estavam entupidos novamente.

“Vai ser uma manhã difícil” – pensei.

Ao amanhecer, um alvoroço tomava conta da rua em frente à oficina. Pessoas gesticulavam freneticamente, outras varriam e lavavam suas calçadas, tirando a lama que as cobria. A vizinha insatisfeita parecia ainda mais irritada, socando o ar enquanto gritava e xingava: “A culpa é dessa árvore idiota! Mais uma vez suas folhas entupiram o bueiro e olha no que deu!”. Eu tentava acalmar todo mundo, mas competir contra a lama é algo quase impossível. De uma hora para a outra, todo mundo concordava que o tempo da árvore havia chegado ao fim e que era ela a culpada pelos problemas da rua. Nada do que eu disse, nenhum argumento surtiu qualquer efeito na ira das pessoas.

Então a notícia chegou.

A prefeitura havia concordado em cortar a árvore. Viriam no dia seguinte.
Todos se dispersaram e eu fiquei alguns momentos ao lado da árvore. Senti-me envergonhado, mal conseguia olhar para ela, como se eu tivesse falhado. Uma folha desprendeu-se de seu galho e desceu suavemente, pousando em meus pés, como se a árvore também pudesse me dizer “eu sei porque você está aqui”.

Naquela noite, não consegui dormir. Passei a maior parte dela olhando pela janela, como se me preparasse para ver o que aconteceria no dia seguinte. Então, mais uma forte chuva começou.

O vento parecia mais fraco que na noite anterior.

Ainda assim, como se desistisse, a árvore não resistiu a ele. E tombou.

O barulho foi horrível, assustou toda a vizinhança. Ouviam-se bebês chorando, viam-se luzes acendendo dentro das casas, murmúrios e vozes indignadas. A chuva parava lentamente, até tornar-se uma fina garoa.

Algumas pessoas saíram de suas casas naquela madrugada de outono para ver o ocorrido. Minutos se passaram e já estavam muitas delas observando a árvore caída, tecendo comentários. “Ela estava velha, mesmo”. A vizinha insatisfeita vibrava com o acontecimento, emitindo várias risadinhas e “agradecendo a Deus por aquela chuva”.

Aos poucos, as pessoas voltaram para suas casas. As luzes se apagavam, uma a uma.

Fiquei um momento próximo à árvore, observando seus finos galhos e seu tronco velho, descascado. As poucas folhas ainda balançavam com o vento, produzindo um som harmonioso de folhagem e o cheiro gostoso de mato molhado. Agachei e passei pela última vez a mão em seu tronco, mas não havia nada a dizer.

Na manhã seguinte, a prefeitura recolheu a árvore.

Muitos meses se passaram. As pessoas viviam suas vidas como antes, mas agora não havia mais o lixo das folhas a recolher. Só o lixo comum, garrafas, latas, papéis velhos e embalagens plásticas que continuaram a entupir os bueiros em dia de chuva. A vizinha insatisfeita agora implicava com o barulho da oficina. Mas isso não importava, porque o mecânico ganhou dois ou três minutos a mais por dia por conta de estacionar os carros com mais facilidade. As pipas agora enroscavam apenas nos fios elétricos e nas antenas de televisão. No verão, as pessoas abrigavam-se embaixo da sombra da marquise da sorveteria, e isso ajudava a vender mais sorvetes. Não havia mais a brisa gostosa, mas isso era resolvido com os ventiladores elétricos, ligados o dia inteiro.

Parece que tudo havia se ajeitado.

Exceto pelo fato de que agora, todas as vezes ao afastar a cortina da janela, um pensamento passar rápido por mim como aquela brisa:
“na minha rua, tinha uma árvore”.


Marcos Cárfora
03 de março de 2010
Texto registrado na Fundação Biblioteca Nacional


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