O homem que se esqueceu de ser feliz
Aos quarenta e cinco anos, ele achava que a vida não tinha muito mais a lhe proporcionar. Escravo de sua própria rotina, havia se esquecido porque saía da cama todos os dias, indo para seu trabalho, enfrentando seus dramas interiores e convivendo com pessoas que ele achava não contribuir com nada em seu cotidiano. Um texto reflexivo, que retrata a vida moderna e a personalidade de muitas pessoas.
Marcos Cárfora
O relógio despertou às seis e meia,
como de costume. Com um longo suspiro, ele parou o despertador, sem titubear, e
levantou-se. Não gostava de fazer hora para sair da cama – “o que tem que ser
feito, tem que ser feito”. Privava-se desse pequeno deleite de cinco minutinhos
a mais, porque achava que não fazia qualquer diferença. Demorar na cama era
coisa que jovem fazia. Ele não, um “velho” de quarenta e cinco anos.
Calçou os chinelos, alisou o queixo e
percebeu que precisava barbear-se. Foi ao banheiro, fez a higiene matinal,
barbeou-se, voltou ao quarto e vestiu-se com a velha camiseta branca de linho e
o terno azul. Olhou para as gravatas que tinha e pegou qualquer uma, sem
escolher. Enquanto isso, a mulher lhe preparara o café. Ele sentou-se à mesa,
quieto e com cara de poucos amigos – a mesma de todos os dias.
- Bom dia! – sorriu-lhe a mulher. Ele
lhe respondeu com a cabeça. Tomou o desjejum em silêncio. Pegou a maleta, acenou
à mulher e foi-se. Chegou à garagem com a sensação de ter esquecido alguma coisa.
Bateu nos bolsos à procura das chaves, estavam lá. Verificou a carteira, estava
lá. Ele sempre tinha isso pela manhã, a sensação de estar esquecendo alguma
coisa. Saiu, então, com seu carro popular da garagem. Enquanto ainda transitava
na rua onde morava, lembrou-se o quanto odiava aquele lugar e quanta
dificuldade tinha para tentar ser simpático com os vizinhos, que acenavam a ele
enquanto passava.
Começou a pensar no trânsito que iria
enfrentar e, de imediato, bufou de forma longa e profunda. Não eram sete e
trinta da manhã e já estava quente, com o sol de verão brilhando sem dó sobre
os que passavam apressados pela rua. Entrou na avenida principal, já suado e
irritado. Como de costume, o trânsito estava insuportável. Carros de todos os
lados, fumaça, motores, buzinas, a velha sinfonia da metrópole. Sete e
cinquenta da manhã e ele parado com seu veículo num mar de automóveis que mais
parecem um cardume de piranhas brigando por um espaço sobre a presa, todos
tentando entrar na fila de qualquer modo, pegar a saída, passar à frente. Nada
o irritava mais do que os “espertinhos” que cortavam a fila de carros, andavam
em acostamentos, ultrapassavam pelo lado errado, na tentativa de tirar vantagem
em um sistema onde todos estão atrás no placar. Os minutos iam passando e o
calor aumentando. Mais suor, buzina, fumaça.
Quando, finalmente, chegou à empresa,
irritou-se profundamente por não encontrar uma vaga próxima. Rodou por mais
sete minutos até encontrar um pequeno vão entre dois carros já estacionados. Um
flanelinha já começou a lhe guiar, do lado de fora, como se ele precisasse de
ajuda para estacionar. “Posso olhar, patrão?” – indaga-lhe o flanelhinha. Com a
feição mais contrariada que podia fazer, fez que sim com a cabeça, porque já
imaginou que, caso respondesse negativamente, certamente encontraria, na volta,
seu carro riscado.
Teve que andar vários minutos debaixo
de sol para chegar à empresa. Entrou, o porteiro lhe deu bom dia. Ele respondeu
com a cabeça. Caminhando pelo corredor de sua repartição, quinto andar do
magazine de vendas, departamento de contabilidade, ia acenando com a cabeça a
todos que lhe davam bom dia. Chegou em seu setor, puxou a cadeira e sentou-se.
Com um lenço, limpou o suor do rosto, novamente suspirou profundamente e ligou
o computador.
Algumas horas depois, levantou-se a
procura de um café. Foi até a cafeteira do setor, pegou o copo plástico e tirou
o bule – estava sem café. Bastou para que ele bufasse com veemência e
balançasse a cabeça negativamente por vários segundos. Uma moça jovem, cerca de
vinte e cinco anos, cabelos vermelhos e olhos expressivos passou por ali e
percebeu a decepção daquele homem, segurando um bule vazio em uma mão, um copo
plástico na outra e balançando negativamente a cabeça. Gentilmente, ela lhe
toma o bule e devolve à cafeteira.
- Vou pedir para que a “tia” venha
fazer mais café, ok?
Ele lhe agradeceu com um movimento de
cabeça e voltou ao seu lugar. Passou a manhã em silêncio, com a cara enfiada em
planilhas eletrônicas.
A hora do almoço chegou e ele saiu em
silêncio. Dirigiu-se ao elevador e apertou o botão. Dois rapazes do
departamento de informática, duas moças de vendas e a chefe do faturamento
chegaram e ficaram a espera do elevador. Quando este parou no andar e abriu a
porta, já estava bem cheio. Ele olhou para o elevador, olhou para todos que
estavam à espera e não entrou. Então, entraram as moças de vendas, a chefe do
faturamento e os dois da informática.
- Vem que dá, é só apertar- disse a
chefe do faturamento.
- Vou no próximo – respondeu de forma
seca. Odiava estar no meio de pessoas, ainda mais de gente com a qual não tinha a menor
intimidade. Irritava-se com aquela conversinha sobre o tempo ou daqueles
assuntos que geralmente a gente puxa quando não tem o que falar mas não quer
dar uma de antipático. A porta do elevador fechou e ele ficou para trás.
Apertou de novo o botão que chama o elevador.
Então, a jovem de cabelos vermelhos
chegou e ficou também à espera.
- O senhor viu que a tia fez mais
café?
- Não, não vi.
- Hum... então, ela fez...
Ele balançou a cabeça sutilmente em
sinal de afirmação.
- O senhor almoça aqui por perto?
- Por que quer saber?
Ela ficou meio desconcertada com a
resposta.
- Por nada, não... só para saber.
Ele nada disse.
O elevador chegou e, mais uma vez,
estava cheio. A jovem de cabelos vermelhos entrou.
- Vem, cabe o senhor aqui.
- Quer saber? Vou de escada.
E desceu de escadas. Na lanchonete em
frente à empresa, pediu o de sempre, porque não gostava de variar. Odiava
mudanças. Comeu sozinho, em silêncio, engolindo a comida enquanto pensava em
tudo que ainda tinha que fazer na empresa naquela tarde, já sentindo calafrios
de imaginar o trânsito da volta.
Retornou do almoço e por algumas
horas, trabalhou na manutenção das contas, até que seu computador, sem motivo
aparente, travou. Ele apertou uma tecla, duas... nada. Irritou-se e começou a
apertar todas as teclas possíveis do teclado, freneticamente, até que ouviu
dois apitos e a tela ficou toda preta. Agora, a máquina ficava reiniciando
sozinha. Ligou para o departamento de Informática e pediu socorro. “Já vou aí”,
respondeu o jovem do outro lado da linha.
Cinco minutos, sete, dez, doze... nada
do cara da informática aparecer. Irritadíssimo, ele ligou de novo. “Peraí, tô
resolvendo um bagulho aqui no departamento de vendas e já vou”. Ele respirou
fundo, contou até dez, simplesmente odiava esse linguajar jovem. Vários outros
minutos se passaram até que o rapaz chegou, olhou a máquina, apertou duas ou
três teclas e, em dois minutos, o computador já funcionava. Aquilo o deixou
ainda mais estressado, porque teve que esperar mais de vinte minutos por um
conserto de dois minutos. Respirou fundo de novo e foi atrás de um café. De
novo, a cafeteira estava vazia.
- Tá de brincadeira! – rosnou,
visivelmente irritado. E voltou ao setor, por onde ficou até o final do dia.
Na volta para casa, mais trânsito. Não
ligava o rádio, nem se lembrava qual tipo de música gostava de ouvir. Tinha a
remota lembrança de que, quando jovem, gostava de música. Chegou até a pensar
em estudar guitarra. Perdeu o gosto durante os anos.
Chegou a casa, cumprimentou a mulher,
e foi tomar banho. Só quando desligou o chuveiro, percebeu que havia esquecido
de pegar a toalha. “Não acredito que sou tão idiota!” – pensou. Chamou a
mulher. Ela não ouviu. Chamou de novo. Nada. Esbravejou mentalmente um palavrão
e saiu molhado e nu. A mulher o viu nessa situação e o repreendeu:
- O que você está fazendo? Está
molhando todo o chão! E andando pelado pela casa?
- Esqueci de pegar a toalha.
- E por que não me chamou?
Ele olhou para o alto, respirou fundo
e não respondeu.
Mais tarde, jantou em silêncio. A
mulher comentou que o filho, que residia em uma república de faculdade, iria visitá-los
no final de semana. “No mínimo, está precisando de dinheiro”, pensou.
Após o jantar, sentou-se à frente da
televisão, assistiu o telejornal e, dessa vez, esbravejou oralmente o palavrão
após mais uma notícia de corrupção na política. Colocou o pijama e foi dormir.
No outro dia, a mesma rotina. Antes de
sair, procurou nos bolsos algo que achava que havia esquecido.
Na empresa, naquele dia, em certo
momento levantou-se em busca de café. Chegou à cafeteira, pegou o copo e o
bule. Estava vazio de novo.
Ele ficou tão insuportavelmente
irritado com aquilo que deixou o bule cair. Como era de vidro, espatifou-se.
Todo mundo olhou, ficou um silêncio no andar. A jovem de cabelos vermelhos
levantou-se de sua cadeira, caminhou lentamente até o homem, que ainda segurava
o copo na mão. Ela percebeu que ele estava extremamente irritado e o conduziu
até o seu local de trabalho. Ele se sentou.
- O senhor está bem?
Ele fez que sim com a cabeça.
- Qualquer coisa, pode me chamar.
Ela saiu, andando lentamente. Deu dois
ou três passos e parou. Voltou-se a ele. Chegou bem perto e lhe disse:
- O senhor sempre foi triste assim?
Ele olhou para aquela jovem por alguns
instantes. Não soube responder.
- Às vezes, tenho a sensação que o
senhor se irrita com facilidade.
Ele se irritou com o comentário dela:
- Você nem me conhece, nem sabe quem
sou, como pode você, uma jovem que mal sabe dos problemas da vida, querer
analisar meu comportamento? Eu fiz alguma coisa que te incomodou? As pessoas
acham que nós temos a obrigação de estarmos sempre felizes, sempre sorrindo,
simpáticos... Isso é tudo demagogia! Cada um é como é. Eu, ao menos, não sou um
falso que, na frente, sorri mas, por trás, fala mal dos outros. E tem mais:
quando você chegar na minha idade, vai lembrar de mim, vai me entender. A vida,
moça, não é uma “balada” não. Esse negócio de “amizade pra sempre”, “amor
eterno”, “felizes para sempre” é coisa de novela. O que você vai encontrar por
aí é só gente querendo tirar vantagem, gente querendo te comer pelas pernas. Você
vai ver que os sonhos que tinha se concretizaram mesmo em sonhos. Vai chegar
aos cinquenta e perceber que não está nem perto de onde achou que estaria nessa
idade.
Ela ouviu aquele desabafo todo e
percebeu que uma tristeza lhe invadia, devagar mas precisa, como a sombra de um
eclipse. Porque, assim como a alegria, a tristeza é contagiante.
- Você pode ter razão em algumas
coisas do que disse. Tem sim, um monte de gente querendo tirar vantagem. Tem
sim, um monte de sonhos que vão ficar para trás, amores que se vão, amigos que
nunca mais vimos. Mas terão novos e surpreendentes amores e amigos, estes irão
te ajudar a conquistar seu sonho ou ainda, te confortar por não conseguir.
Haverá momentos ruins, mas também momentos maravilhosos, e estes sobrepujarão as
tristezas. Haverá sempre os que querem tirar vantagem, mas também haverá os que
darão a passagem para você em uma fila. Eu escolho quais dessas pessoas, quais
desses momentos, fazem meu modo de viver.
Ele ficou em silêncio. Ela:
- E quando chegar à sua idade, vou
mesmo me lembrar do senhor. Porque acabo de aprender que, mesmo se a minha vida
não for perfeita, não posso me esquecer de ser feliz.
E saiu, em direção ao seu setor.
Ele ficou estático por alguns minutos,
que lhe pareceram horas, pensando em como levava a vida. Em como se irritava
facilmente com detalhes tão insignificantes. Tentou se recordar qual foi a
última vez que sorriu, da última vez que falou com algum amigo, jogou conversa
fora com seu filho. Tentou lembrar da última canção que cantarolou, do último
filme que viu no cinema. Da última vez que foi à praia ou que passeou de mãos
dadas com o amor de sua vida. Isso o levou a pensar quando tinha sido a última
vez que beijou sua mulher e tentou vasculhar em sua mente em que momento de sua
trajetória ele havia perdido a paixão. Mas estava há tanto vivendo essa rotina
de infelicidade, que não se lembrava de nada disso.
Desligou o computador e levantou-se de
sua cadeira. Pegou sua maleta, afrouxou a gravata e caminhou em direção à
porta. Virou-se e olhou para a jovem de cabelos vermelhos. Ela não o viu, mas
ele esboçou um sorriso há muito guardado.
Voltou para casa, com o rádio do carro
ligado. No caminho, viu crianças se divertindo em parquinhos, casais namorando,
gente sorrindo. E percebeu que aquilo que vemos depende muito do nosso estado
de espírito. Um motorista apressado lhe buzinou, mas ele não deu importância:
ofereceu gentilmente a passagem. O motorista lhe agradeceu, com uma leve
buzinada e um sorriso.
Chegou antes de sua mulher, que
trabalhava como professora em uma escola do governo. Abriu a porta, deixou a
maleta cair. Foi até a cozinha em busca de um copo d’água e olhou para a
cafeteira. Tinha café no bule. “Agora não quero mais” – e riu.
Encostou-se na mesa onde jantava, copo
com água à mão, e imaginou como poderia ser sua vida dali para frente. Chega
desse mau-humor, dessa irritação. Era hora de se livrar dessa infelicidade
acampada dentro dele. Era hora de se renovar, de ser feliz novamente. Agora,
ele sabia o que andava esquecendo todas as manhãs: ele se esquecia de ser
feliz.
Resolveu tomar um bom banho e deixar
aquela tristeza ir pelo ralo abaixo. Abriu o chuveiro e deixou a água lhe tomar
o corpo. Então, percebeu que havia esquecido a toalha e que iria ter que sair
molhando a casa toda. “Minha mulher vai ficar doida!” – e riu, imaginando a
cara da esposa. Tinha até uma resposta pronta a ela: “é só água... já já,
seca”.
E gargalhou, de forma tão intensa, que
ficou sem ar.
A vida dele realmente poderia ter sido
outra a partir daquele dia, se um infarto durante o banho não lhe tirasse a
oportunidade de se tornar outra pessoa. Foi encontrado já sem vida, pela
mulher, caído no chão. O coração, enfraquecido pela depressão e tristeza,
acabou lhe pregando uma peça, o deixando com uma lição sem aprender: se
demorarmos muito para perceber, o clichê “nunca é tarde para ser feliz”, às
vezes, pode sim, ser tarde demais.
Parabéns Marcos, pela grande sabedoria contida nesse conto, que infelizmente retrata o cotidiano de muitas pessoas! Fantástica lição de reflexão!
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